Em outra língua fumo se escreve com h

renata
4 min readOct 14, 2022

Esses dias me dei conta de que não me lembro de quase nada entre os meses de junho e agosto. Sei que dei aulas, sei que corri, sei que cozinhei e fui a restaurantes, que li uns livros, preparei essas mesmas aulas e escrevi muito, que andei para lá e pra cá de ônibus e peguei caronas. Que tomei comprimidos antes de dormir e ao acordar, aqui e em outras duas cidades diferentes, uma minúscula e outra gigantesca. Que aos poucos fui me desfazendo da máscara em alguns lugares, a começar por quando pisei para fora de um avião, no fim de um parênteses, em abril deste ano.

Pela primeira vez, sentada na frente do psiquiatra essa semana, ouvi a palavra “trauma”. Não nessa dimensão de lugar comum que o termo adquiriu, mas sim associada às experiências — particulares e coletivas — dos anos de 2020 e 2021. A psicóloga, por sua vez, quando me ouviu falar das minhas expectativas em relação ao final do ano e relatar um episódio no lugar de trabalho, onde tive de sair da sala onde estava para respirar, para sentir que não era quem era no final do ano passado, me confirmou, “tu não é quem tu era”.

2019 foi um ano muito difícil para mim, por uns motivos que hoje considero tolos. No entanto, sofri tanto que perdi doze quilos em questão de meses, de ter de enfrentar olhares preocupados dos meus pais, da minha irmã, de colegas de trabalho e do porteiro do edifício. Quando achava que estava bem novamente, ter de ficar recolhida em casa em 2020 me pareceu até bom, sem saber que ia enlouquecer de outras formas, e em 2021 foi como se meu corpo borrasse os contornos e se tornasse amorfo, como se eu não soubesse mais onde existir. Coloquei uma foto minha de avatar no Twitter porque parecia que precisava ver meu próprio rosto quando escrevesse na internet. Ela ainda está lá. Sou eu e não sou eu.

Os momentos desse ano que retenho límpidos na memória envolvem muito claramente meu corpo. Talvez porque meu trabalho consiste em pensar muito para fora dele, prestar atenção no meu entorno — “Será que eles estão entendendo? Por que ela tá franzindo a testa? Fulana está cansada hoje” — simplesmente tratei de obliterar o resto. Correr, caminhar, comer, rir. Disso me lembro. O resto é como se fosse um hematoma que aflora na lateral da coxa, não se sabe por que.

Escrevo tudo isso porque, de formas diferentes, não tenho me reconhecido. Percebo no espelho que tenho o princípio de uma mecha de cabelo branco nas têmporas, algo que não estava ali antes do início desse ano, quando eu cozinhava com medo de me cortar. O colágeno parece estar se despedindo de meu rosto. Meus antebraços e minhas mãos estão diferentes, cheios de veias saltando, às vezes parecendo maiores, umas unhas curtas de quem mexe na terra, sempre sujas de caneta ou de gengibre e cúrcuma. Quando foi que minhas células novas se agregaram desse jeito, depois de eu ter me teletransportado a tanta parte enquanto fiquei fechada dentro de casa?

“Virei uma senhora”, disse para uma amiga, que em compensação me sinaliza às vezes que parece insano eu manter minha rotina, ônibus para ir, ônibus para voltar, umas quantas páginas nesse ínterim, o fim do ensino superior no Brasil tal como queríamos conhecê-lo e ainda por cima treinar para conseguir um dia, talvez, correr vinte e um quilômetros. Brinco, me comparando com o candidato à presidência da república no qual depositamos nossas fichas, dizendo que queria ter aquela energia aos 76 anos. Aí está um agregado de células que parece desconhecer o tempo, que por ter se replicado em condições tão mais árduas no passado, acha que saltar em um carro de som é um esforço pífio.

“Tenho anorexia de exaustão”, disse para um amigo, “nunca acho que fiz o suficiente para estar cansada”.

Um dia escrevi no Twitter que os últimos anos foram um incêndio, do qual quem saiu ileso em muitos casos ainda não percebeu que está cheirando a fumaça e que talvez tenha se queimado, nem que seja as pontas dos dedos, tentando se segurar a algo quente demais. Muitos de nós estão tendo de voltar aos escombros, tentar ver o que dá para salvar. No meu caso, são principalmente amizades e relações de coleguismo, minha própria condição de pesquisadora, que vejo totalmente queimadas, sem conseguir entender onde cabiam antes.

Agora tenho dado a fantasiar que acordo no dia primeiro de janeiro, apenas mais um dia em um ano letivo que não terá acabado, em uma sacada ou em um café em um lugar onde ninguém me conhece. Na primeira vez que pensei nisso, me enxerguei fumando um cigarro.

Não fumo. Talvez apenas não consiga me desvencilhar da fumaça.

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